A luz. Branca e bela, mas que mesmo sabendo que pode ficar cego por olhá-la, você continua a encarar. Não tem como não desviar o olhar dessa luz. Não me lembro do que aconteceu, mas também não me importa. Eu estava em um lugar que era tão belo que poderiam considerar ser o Paraíso. Quis chegar mias perto. E cheguei.
Sinto como se tivesse acordado de um sono profundo e cheio de energia. Queria correr pela neve úmida, deslizar pelo rio congelado sem medo algum, mas foi aí que avistei uma pequena casa ao norte do lago, próxima à uma montanha. Quis chegar mais perto. E cheguei.
Pude ouvir o som de madeira sendo queimada, água escorrendo em uma torneira, latidos e risadas. Uma risada alegre, leve e jovial, provavelmente de uma criança que morava nesta casa. Eu não soube muito o que fazer naquele momento então resolvi bater à porta, mas não atenderam. Insisti mais uma, duas, três vezes quando uma pequena menina com os cabelos tão claros como o sol, olhos azuis quanto a água do rio por qual passei, bochechas rosadas e roupas sujas. De repente ela sorriu para mim e disse:
— Mamãe, o papai voltou para casa!
Foi aí que me lembrei. Já vi essa garotinha antes, mas parecia ser um sonho. Mas não era. Veio em minha mente lembranças de carregá-la em um momento que, talvez, ela devesse ter uns dois anos. Vi uma linda mulher que parecia uma versão mais velha da minha filha e, meu Deus, ela era linda. Quando me veio de volta todas aquelas lembranças, lembrei do que acontecera. E então, tudo ficou escuro outra vez.
Abri os olhos e por um momento não consegui me mexer e sentir uma dor na cabeça. Será que eu desmaiei? Não me lembro.
Notei que eu estava em uma cama, com almofadas na cabeça e nos pés. Um copo d'água repousava do lado da cama em uma mesinha e pude sentir um cheiro familiar no ar. Levantei e saí do quarto. Notei que já tinha anoitecido e me perguntei quanto tempo tinha se passou desde que estava acordado pela última vez. De repente escuto uma voz me chamando.
— Sebastian!
Era ela. A mulher que apareceu em minhas lembranças. Ela era ainda mais bela e radiante que em minhas memórias. Ela sorria. Um sorriso tão doce que pude sentir meu coração batendo tão rápido parecendo que ia fugir, como se minhas costelas fossem a gaiola e quisesse se libertar. Mechas de seu cabelo roçavam em suas bochechas e a barra de sua saia longa voava envolvendo suas pernas, que revelavam botas sujas de neve. Ela estendeu a mão. Quis chegar mais perto. E cheguei.
Ao me aproximar notei seu nariz vermelho por causa do frio e o resto de sua pele tão pálida quanto a neve que caía lá fora. Me sentei próximo a lareira que ela jogava pedaços de madeira na tentativa de nos aquecer. Resmungou quando uma fagulha a queimou e não pude evitar rir baixo com a cara que ela fez. Se levantou e me entregou uma caneca que estava sobre a mesa. O cheiro era de chocolate quente com marshmallow. Sentia que ela sabia muito sobre mim que nem eu mesmo conseguia entender, começando por como fui parar naquele lugar de repente. Mas sabia que ela poderia me contar.
Querido, você conseguiu descansar? Sei que teve um dia cansativo, não vou me importar se quiser se deitar novamente. Ela sorriu e aquele sorriso me iluminou. Aliás, acho que poderia iluminar a sala toda. Quis ser sincero com ela, então falei:
— Me desculpa, mas não me recordo de você nem da menina que acredito ser sua filha. Hoje tive uns flashs mas ainda não consigo me lembrar de vocês.
Ela ficou calma, como se esperasse por essa reação. Sorriu e me olhou de um jeito paciente, como se já tivesse me explicado isso antes. Mas como não consigo me lembrar de nada? Ela bebeu seu chocolate quente e me contou:
— Meu nome é April e a menina que viu mais cedo é a Jane e sim, ela é minha filha. Mas também é sua. Ela tem cinco anos e nós somos casados há dez anos. Entrei em choque. — Parecia que perdi uma parte da minha vida mas não sabia o porquê disso. Ela notou minha preocupação e continuou a explicar. — Entendo você reagir assim, mas vou contar tudo detalhadamente, não se preocupe.
Então ela contou. Contou que sofri um acidente de carro na volta do trabalho. Jane tinha acabado de completar dois anos e eu voltava para a festa surpresa com o bolo. Ela me contou que um caminhão bateu na traseira do carro e eu fui arremessado e bati com a cabeça. Desde aquele dia, não me lembro do ocorrido e tenho lapsos que causa a perda de memória.
Por isso não me lembrava. De nenhuma delas. Não lembrava da nossa vida juntos, de carregar Jane no colo, de colocá-la para dormir e de jantar com April. Minha cabeça começou a girar e me perguntei por quanto tempo eu ia entender que aquela era minha família até o próximo lapso. Não pude suportar a dor de esquecê-las novamente. April deve ter notado meu desespero pois ela tinha uma ruga de preocupação, e nem aquilo tirava a beleza dela. Quando dei por mim, já tinha lágrimas em meus olhos por medo de esquecer tudo aquilo, mas não pude evitar. Ela me abraçou e desmoronei ali mesmo.
Jane apareceu. Ela estava com um pijama de flanela rosa cheio de unicórnios e um urso nos braços com um colar aparentemente feito por ela escrito "Mr. Bear" e mexia no olho com um cara cansada. Se aproximou e sentou no colo de April.
— Por que vocês ainda não dormiram? Papai passou mal de novo?
April sorriu e beijou sua cabeça.
— Não, meu amor. Só estamos conversando. Mas a mocinha que já deveria estar dormindo. Posso saber o motivo de estar fora da cama?
— Não consegui dormir. Tive um pesadelo. — Agarrou o Mr. Bear e beijou se nariz. Eu resolvi falar com ela. A chamei para sentar em meu colo e ela aceitou. Ela me mostrou um sorriso banguela e beijei sua testa e disse:
— Não se preocupe, minha pequena. Os pesadelos só servem para nos tornar mais fortes. Quando você menos espera, eles vão embora e nada mais vai te perturbar.
Ela achou graça e me deu um abraço. Depois deu um beijo na bochecha de cada um e foi correndo para o quarto. April então recolheu as canecas e disse que iria deitar e que eu poderia ficar na sala até quando eu quiser e então me beijou. Eu tive a sensação de ganhar algo novo e antigo ao mesmo tempo. Senti como se a beijasse pela primeira vez mas ao mesmo tempo já conhecia aquele beijo de anos. A envolvi em meus braços para que não se fosse e ela passou os braços pelo meu pescoço, chegando mais perto. Não sei como contar isso, mas naquela noite tive a noite de amor mais romântica que poderia ter. Ao amanhecer me recordei de que não lembraria daquilo nunca mais, então quis viver o momento por um tempo.
Saí do quarto e já não tinha mais ninguém em casa. April deixou um bilhete que dizia que levaria Jane para a escola e de lá iria trabalhar, que quer dizer que passarei o dia sozinho até seis da tarde. Foi então que vi a luz. Não, não podia estar acontecendo de novo. Eu tive a sensação de ter desmaiado. Só via tudo preto e a luz. A luz me tiraria todas as lembranças de Jane e April. Não consigo me mexer e ver nada além da luz.
Sinto o passar das horas quando escuto April gritar "Jane! Pegue meu telefone na bolsa!" Queria poder ver seu rosto pela última vez até chegar a hora. Queria abraçar Jane, colocá-la no colo e dizer que vou protegê-la de tudo, mas não posso. Não consigo nem dizer que as amo e que tudo vai ficar bem. Escuto April ao telefone: "Por favor, mandem urgente! Meu marido está desmaiado. Ele sofreu um acidente há anos e desmaia quando tem lapsos de memória. Mande a ambulância rápido!"
"Querido, vai ficar tudo bem. Eu e Jane te amamos. Vai ficar tudo bem."
Mas não ia, pois ela estava chorando. Deve fazer isso sempre que desmaio, mas se faz de forte para Jane e para mim. Sei como isso deve ser difícil para ela. O som da ambulância me desperta do devaneio e sinto quando me levam embora. A qualquer momento eu vou embora. Não queria, mas vou. Só quero continuar aqui para cuidar delas. Quero que saibam o quanto as amo e que nada vai mudar. Que quero acordar disso para poder ter a vida ao lado delas. Ensinar Jane a andar de bicicleta. Sair com April só para jantar fora sem motivo algum. Quero acordar! Para dizer isso tudo. Mas não consigo. A luz continua aqui e sinto que vou embora a qualquer momento. Luz, diga a elas que sinto muito.
Abri os olhos e vi uma luz muito forte. Aparentemente eu estava em um hospital pois tinha uma pulseira de identificação no meu pulso direito. De repente ouvi chamarem meu nome e olhei. Era uma mulher loira, de olhos claros e sorrindo pra mim e a encarei.
— April? April, estou acordado.